Taberna do "ti"Pereira (foto retirada daqui)
Noé, logo que saiu da Arca, após o Dilúvio, a primeira coisa que fez foi plantar uma vinha, porque antes tinha sido agricultor – Génesis, Sagradas Escrituras. Plantada a vinha, espremidas as uvas e fermentado o mosto, Noé bebeu o vinho, gostou e embebedou-se. A bebedeira foi tal que provocou a primeira zaragata familiar na segunda fornada humana, castigando o seu neto Canaã, filho de Cam, por este o ter visto nu. Este simples resumo bíblico, sobre o aparecimento do vinho, tem um único sentido justificativo. Sem vinho, não há taberna.
A vinha iniciou o seu percurso para o sul, expandindo-se pelos países mediterrânicos da Europa e pelos países do Norte de África. Passando pela Galileia, Jesus bebeu do seu vinho e lastimou que o chamassem bebedor – S. Mateus, 11 –. Ao sul de Portugal, beneficiado pela mesma zonagem climática, os árabes encheram as suas ânforas com vinho. Na sua subida para o Norte, abandonadas as ânforas, o vinho enche as pipas de castanho e de carvalho.
Nas albergarias, no tempo das mudas, quando os cavalos suados puxavam as diligências reais, os seus ocupantes fidalgos, os piratas e salteadores, os pichéis de estanho saciavam-nos com vinho, sem distinguir classes. Nas estalagens serranas ou tabernas alargadas aos almocreves e aos machos cansados pelas cargas de odres de vinho e de azeite, os pichéis não descansavam. Por vezes, nas estalagens, tinham a companhia dos carvoeiros, que aldrabavam os compradores de carvão com o peso do negro volfrâmio, apanhado do chão para os lados da Panasqueira.
A taberna foi, ao longo dos tempos, a sala de visitas das aldeias ou lugarejos e o único centro social das suas comunidades. Na sua penumbra das tardes e nas noites, estas aclaradas com a luminosidade pálida do candeeiro, os jogadores da sueca ou do dominó só toleravam o som das gaitadas do realejo de boca ou de um acordeão de passagem. Depois do trabalho, o cavador, largada a enxada na soleira, guardada pelo rafeiro, entra sorrateiro e, enquanto espera a oferta de um copo, mastiga bacalhau cru desfiado, para completar o ritual.
De madrugada, o bagaço para matar o bicho, à tarde, o vinho para a merenda, à noite, o vinho para sossega.
O caixeiro-viajante, com aparições periódicas, entra engravatado e pinoca e logo saúda com a oferta de uma rodada, para abrir caminho ao seu negócio.
A taberna do passado não foi, somente, um centro social.
Os imprevistos da Natureza deram ao homem rural uma cultura de conhecimentos, brotada da sua experiência com os amanhos da terra de cultivo. O homem sabia observar, interpretar as mudanças do clima e gastava os olhos a ver o céu, na esperança da chuva. E, certa, quando o vento empurrava as nuvens do Colcurinho para a Estrela. Olhando a lua, só podava no quarto crescente. Saber capar os tomateiros e meloais era com ele e não com o engenheiro, ou impedir a entrada da mulher menstruada no lagar de azeite, era com o seu mestre e não com o doutor.
Na taberna, nos dias festivos ou de convívio já molhado, cantava-se ao desafio, não com versos de Camões, mas com as quadras rimadas do cavador-poeta da Malhada, na freguesia de Vide. Estas quadras, cantadas isoladas ou ao desafio, tinham a cadência do fado corrido e o fôlego da verdade do vinho e da verdade dos versos do melhor poeta português António Botto: «Amigos, enchei as taças de vinho, as almas vêm à tona».
A taberna também fazia milagres.
Num certo dia, já afastado no tempo, o cónego Nogueira sai do Piódão e do seu Colégio que preparava jovens para o Seminário da Guarda. No caminho, cai da mula que o transportava para a Vide e é levado muito ferido e ensanguentado para a farmácia, numa padiola de paus atados. O seu dono, conhecido por João Farmácia, estava, na altura, bêbedo e sonolento sobre o banco da taberna próxima. O «Farmácia», aliás sabedor e pronto a socorrer doentes, na falta do médico, colocado em frente do cónego Nogueira, limpa-lhe o sangue, lava-lhe as feridas com tintura de iodo, une com agrafes as fendas da cabeça e envolve-as com ligaduras rasgadas de um lençol branco de linho, de uma vizinha. O povo embasbacado assiste, formando um círculo fechado e abafado. Terminado o tratamento, ouve-se um murmúrio: “foi um milagre, não gemeu!” e, mais alto, para o céu ouvir, “é um santo!”.
Na taberna o vinho revigorava forças aos combatentes de João Brandão, nas lutas contra os miguelistas. Na estalagem, em Vide, o pichel fazia rodadas com João Brandão e seus combatentes antes de enfrentar os Cacas que, de trás da serra, como salteadores e fiéis aos absolutistas, atacavam para os lados da Barriosa e Baloquinhas.
Na sua taberna, em Vide, o Severino Espanhol, prestes a transportar na sua mula o Dr. Vasco de Campos para socorrer um doente, pede à mulher para servir dois copos.
Na taberna, o vinho branco era o champanhe dos pobres. A taberna fomentava, também, uma certa democracia rural. Na Vide, os estudantes, nas suas férias, levavam o voltarete para a taberna, o jogo de cartas que, no antigo regime, era jogado pela aristocracia nos salões dos palácios franceses. O Voltarete foi acolhido nas lareiras dos senhores padres serranos, a partir de Unhais da Serra, liderado pelo padre Alfredo e pelo padre Cândido Nobre, em Vide, como anfitrião. Mas era na loja de Manuel Dias, com a alfaiataria e taberna, que se jogava o voltarete. Este jogo, jogado nos palácios reais em França pela aristocracia clerical e rural, teve o privilégio de ser jogado na taberna.
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