Razao

ESTE BLOGUE COMBATE TUDO O QUE POSSA POR EM CAUSA A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A SUA LIBERDADE. É, POR ISSO, ANTICAPITALISTA E ANTICOMUNISTA.

31/03/08

A Confraria do Carolo

A malha do milho na Eira da Regada - foto retirada daqui
Em primeiro lugar, a palavra confraria, segundo o dicionário etimológico português, significa confraria. Noutros dicionários, a confraria identifica-se com misericórdias e com a principal componente, a religiosa e com associações de carácter cultural e social. De qualquer modo, todas as suas componentes integradas nas confrarias estão abençoadas e, consequentemente, convergem para uma benéfica harmonia dentro de comunidades regionais, principalmente por motivos gastronómicos.
Nos últimos tempos, uma onda de confrarias cobriu Portugal de Norte a Sul, mas por uma questão de vizinhança, refiro-me somente a duas: a Confraria da Chanfana e à recente Confraria do Bucho, com a sua "capital” em Arganil.
Como a chanfana, pessoalmente, não é do meu agrado, talvez por não se situar dentro da minha vivência regional, saúdo a Confraria do Bucho porque, no passado, fazia parte dos costumes dos meus familiares em Vide, e era convidado para as festividades do bucho, na Páscoa.
Aliás, como os de Arganil, os enchidos de Vide, tinham também, no passado, uma significativa fama e enchiam, praticamente, todos os fumeiros das aldeias serranas, incluindo os da minha família, pela matança de três porcos engordados pelas lavagens dos cozinhados das cozinhas, com as pias dos animais, debaixo destas. Desaparecidos os costumeiros enchidos de Vide, recorro, pelas suas semelhanças, ao consumo dos enchidos de Arganil, tornando-me assim ingrato por recusar os enchidos com a marca "Nobre”. Devido a esta marca, a minha filha, Maria Teresa, que foi morta na sua juventude, tinha a alcunha de "salsicha», entre os seus colegas estudantes.
Ainda dentro deste contexto, recordo que na localidade do Gondufo, na freguesia de Vide, os seus presuntos eram considerados os melhores de Portugal. E porquê? Justificava-se, devido à chamusca dos porcos ser feita com a carqueja, diferente da que se usava nas restantes aldeias, incluindo Vide. Esta diferença justificativa levou-me a mandar fazer uma análise de amostras das carquejas do Gondufo e das outras, que vegetavam nas encostas e montes circundantes. Resultado, as carquejas do Gondufo tinham uma essência odorífera benéfica para dar melhor qualidade aos presuntos. Seria por vegetar em nichos ecológicos ou microecossistemas mais favoráveis?
E o carolo, que já tarda? Se a chanfana vem da cabra velha (coitada da velhice), o bucho vem do porco engordado, o carolo vem do milho. Mesmo proveniente dum vegetal vulgar, não merece uma confraria? Aqui, hoje, dou-lhe essa honra. Não só pelos seus costumes gastronómicos e com as mesmas bênçãos religiosas, como nas outras confrarias, mas por outros motivos, que estas não têm. Quais? O milho-verde, nas baladas românticas do inesquecível, e meu preferido cantor, Zeca Afonso. Nas desfolhadas, ao luar nas eiras ou nos fundos largos das casas, que provocavam anseias para o aparecimento da massaroca do milho-rei, coroado com grãos vermelhos e homenageado, por rapazes e raparigas, velhos e velhas, com beijocadas quentes para atiçar amores e recordá-los. Já agora, recordo que roubava estas maçarocas para as beijocas dos anos seguintes. O ritmo dos manguais sobre as maçarocas, que agradeciam, pelo seu destino.
O milho com as suas bandeirolas alimentava e engordava os animais de trabalho e o gado miúdo. Os chás de barbas de milho, que aliviavam e curavam doenças renais. Os casulos das maçarocas, o melhor papel higiénico. Os cigarros e charutos, feitos com estas barbas enroladas nos folhelhos mais finos, que eu fumava com os meus colegas de escola, no quintal da senhora Florinda.
Resumindo, o milho, na sua diversidade de cadeia alimentar e romântica, reinava sobre os outros reinos animais. Aliás, o filósofo grego Platão acreditava que o reino vegetal também tinha alma. E com razão. Perante o reino animal racional, de hoje, é a alma mais bela.O carolo nesta sua cadeia alimentar merece a sua confraria, conforme os povos ribeirinhos, nas margens das ribeiras de Alvoco, Loriga e Piódão e que humanizou e valorizou toda a Alta Serra, abençoada por uma Estrela.
O carolo, a farinha mais grosseira da moagem pelas mós dos moinhos e separado dos serrões da farinha mais fina do milho, destinada, especialmente, para a cozedura da broa nos fornos de lenha. O forno de Vide, comunitário, propriedade da minha família, as fornadas eram pagas com poias e comidas com sabor "divino” feitas pelo prestigiado forneiro Manuel do Baiol.O carolo, com a sua riqueza em fibras naturais e não manipuladas como as da actualidade, foi a sobrevivência dos referidos povos serranos e cozinhado por práticas costumeiras que o tornaram no mais alto nível nutricionista.
Neste propósito, a minha mãe deu sobrevivência aos seus catorze filhos, como professora primária e conhecedora destas práticas. Uma “ninhada” de filhos, nascida junto à lareira com o fumo das cavacas, com as suas benéficas dioxinas. E hoje, para ter só um ou pouco mais filhos a algazarra por uma maternidade! Recordo, quando criança, e no início da minha juventude, ia buscar o carolo ao moinho do Salgueiral, ao cuidado dos melhores moleiros, Alberto Amaral e Salvador.

Um moinho em Chão Sobral, parecido com o do Salgueiral na Vide. Foto retirada daqui

As suas sopas de carolo, com toucinho e chouriço, as sopas de papa-Iaberças, com a mistura de nabiças ou partes tenras das couves, os queijos de carolo cobertos com mel. Para não esquecer, apesar de ainda não ter apreciado o bucho de Arganil, talvez com ciúmes pelo bucho de Vide, do passado, mas que oportunamente penso, em breve, fazer a devida comparação.

Deste modo, a Confraria do Carolo, com a sua capital em Vide, embelezada com as cores verdes das suas capas e largos chapéus (cores do milho-verde), já está geminada, por natureza costumeira e religiosa, com a Confraria do Bucho, com a sua capital em Arganil.

Falta só a entronização dos confrades da Confraria do Carolo. Ou melhor, não falta. Os seus melhores confrades, pelos seus direitos próprios e com as suas vestes coloridas, com os melhores valores humanos, são todos esses povos serranos.

--------------------------------------------------------------------------------------

PAPAS DE CAROLO
Ingredientes:
(Para 4 pessoas)

- 3 chávenas de carolo (milho amarelo ou branco partido) ;

- 1 litro de leite ;

- 1 casca de limão (opcional)1 chávena de açúcar (aprox.);

- sal;

- canela.

Confecção:

Para lavar o carolo, este é colocado num alguidar com bastante água fria e agita-se de modo a trazer ao de cima o farelo. Retira-se o farelo e muda-se a água tantas vezes quantas as necessárias para que o carolo fique bem lavado. Quando o carolo estiver limpo de farelo, muda-se a pouco e pouco para outro alguidar com água, para o libertar das areias que se depositam no fundo, operação que se repete as vezes necessárias. Tem-se ao lume uma panela com água temperada com sal (casca de limão e canela). A água deve ser pelo menos três vezes o volume do carolo (para cada chávena de carolo, quatro chávenas de água). Quando a água levantar fervura, introduz-se o carolo e deixa-se cozer, tendo o cuidado de o mexer de vez em quando no princípio e constantemente assim que o preparado se torne mais espesso. Quando o milho estiver a meia cozedura, começa a juntar-se o leite a pouco e pouco, mexendo sempre. Por fim adiciona-se o açúcar, deixa-se cozer um pouco mais e serve-se em travessas ou pratos individuais enfeitados com canela.

C.N.

Sem comentários: