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01/02/08

O Cientista Mário Augusto da Silva (II)


Mário Augusto da Silva (à esquerda) no Instituto do Rádio de Paris, 1925-1930

Originário de uma família republicana, nasceu em Coimbra, na Sé Velha, em 1901. Licenciou-se em Física, com distinção - 19 valores, na Universi­dade de Coimbra. Colega do Professor António de Oli­veira Salazar na mesma Universidade, cedo sentiu a intolerância daqueles que, anos mais tarde, após a revolução de 1926, foram os mentores do Estado Novo. No início dos anos vinte publicou, num jornal de Coimbra, um ensaio sobre a origem da vida. As suas ideias base­avam-se em princípios científicos e não dogmáticos. Primeiro surgiram as respostas, depois a persegui­ção. Para se ter uma ideia da polémica levantada, refira-se que num outro jornal e durante cerca de três meses, duas vezes por semana, foram publicados artigos de resposta com direito a primeira página.

Eleito por Salazar para encabeçar a lista dos docen­tes e investigadores afastados das universidades por­tuguesas, em 1947, foi discípulo e assistente de Madame Curie[1]
(Instituto do Rádio de Paris - 1925-1930). Foi admitido no Instituto do Rádio de Paris na mesma altura que Frédéric Joliot. Madame Curie tinha então dois assistentes: Marcel Laporte e Irène Curie, sua filha mais velha. Mário Silva ficou a trabalhar com Marcel Laporte enquanto Frédéric Joliot trabalhou com Irène Curie[2], com quem viria a casar. No Laboratório Curie viveu alguns dos melhores momentos da sua vida, como se deduz das suas palavras: "... Na falta de um lugar no Laboratório, foi na sua Sala de aula que Madame Curie me instalou para a execu­ção dos meus primeiros trabalhos. Assim se expli­ca, em grande parte, a atenção com que os seguiu desde o início, e todo o interesse que por eles to­mou. Assim se explica também que eu tivesse fica­do em estreita colaboração com a organização do seu curso teórico e que eu tivesse tido a honra de a auxiliar nas demonstrações experimentais das suas lições magistrais. Nunca mais me foi possível es­quecer a emoção que senti quando, pela primeira vez, entrei a seu lado na Sala de aula onde, nesse dia, ela ia falar sobre a teoria das transformações radioactivas a um numeroso auditório que a recebeu de pé e, segundo o costume, com uma prolongada salva de palmas. A experiência que eu tinha previ­amente montado e verificado, era das mais curiosas do curso: demonstração a todo o auditório do ritmo das transformações radioactivas, tornando por assim dizer, audíveis as explosões dos átomos de rádio... Respirei aliviado e quase tive a ilusão, nesse minuto para mim memorável, de que aquelas palmas também se dirigiam ao ignorado português que ali estava, sentindo que acabara de viver um dos momentos mais emocionantes da sua vida de professor". 

Visita do Presidente Doumergue ao Instituto do Rádio de Paris. À direita, o Presidente Doumergue; por detrás e um pouco acima, o casal Joliot-Curie e por detrás, à direita Marcel Laporte. Madame Curie está ao centro, entre Jean Perrin, à direita e o Dr. Regault, à esquerda. Mário Silva está por detrás do Dr. Regault, à esquerda de Marcel Laporte.
Foi colega e amigo de grandes cientistas, que na mesma altura preparavam também as suas teses de doutoramento, como Frédéric Joliot, Irène Curie, S. Rosenblum, A. Proca, Frilley, Consigny, Jedrzejowski, etc. Conviveu com outras grandes figuras da Ciência desse tempo, como Paul Langevin, Jean Perrin, Debierne e Holweck. "... Conheci Niels Bohr, em Paris, no Instituto do Rá­dio, onde lhe fui apresentado por Madame Curie, por ocasião das cerimónias académicas, comemo­rativas do primeiro centenário da morte do grande físico francês Fresnel, em 1927. Todos os grandes nomes da Física moderna honraram, com a sua presença, estas cerimónias, como Lorentz, J.J. Thomson e o próprio Einstein...", referiu Mário Silva. O Instituto do Rádio de Paris (IRP) era então um dos maiores centros mundiais de investigação na área da Física Atómica. Mário Silva abriu as suas portas a outros investigadores portugueses que por lá passaram, como foi o caso de Manuel Valadares, outro grande físico português. Manuel Valadares viria a trabalhar com Rosenblum, então director de pesquisas do Labora­toire de l´Electroaimant em Bellevue, onde foi insta­lado o famoso grande electro-íman.
Mário Silva com colegas no IRP (à direita), S. Rosenblum ao centro e A. Proca (à esquerda)
Mário Silva chegou a Paris em Setembro de 1925 sem carta de apresentação ou recomendação para pessoas ou entidades francesas. Nem sequer para o Instituto do Rádio onde iria trabalhar. Quando chegou a Paris foi falar com um dos maiores democratas portugueses da I República, Affonso Costa, nessa altura exilado em Paris, e para quem levava uma carta de recomendação escrita por Gaspar de Lemos, grande democrata da Figueira da Foz, correligionário político e grande amigo do pai de Mário Silva e que havia sido ministro da agricultura do governo presidido por Affonso Costa. Na altura da apresentação, ao saber que desejava frequentar o Laboratório Curie, prometeu-lhe nesse mesmo momento que o apresentaria a Paul Langevin, seu grande amigo. Affonso Costa impressionou-o pelas suas ideias sobre a exploração de rádio em Portugal e a concessão que havia sido dada aos ingleses na Urgeiriça. Mário Silva não esqueceu e lembrou o papel de Affonso Costa, dado o seu prestígio junto da comunidade científica francesa. Na inauguração do ano académico do ano lectivo de 1925-1926, Affonso Costa foi a primeira pessoa a ser apresentada, pelo mestre de cerimónias, ao novo reitor da Universidade de Paris. Deste prestigio beneficiariam o nome de Portugal e os portugueses que viviam em França. Foi devido a ele que o jovem físico de Coimbra receberia um ofício datado de 1 de Dezembro de 1925 do então secretário da Société de Chimie-Physique, Charles Marie, grande amigo de Affonso Costa, convidando-o para sócio. Posteriormente, em 16 de Janeiro de 1926, já com provas dadas, foi eleito sócio da Société Française de Physique. Foi membro destas associações científicas pela vida fora. No escritório de Affonso Costa, no Banco Nacional Ultramarino, rue du Helder nº 8, em Paris, conheceu outras grandes figuras da democracia portuguesa, como o General Norton de Matos, António Sérgio e a escritora Virgínia Lopes de Almeida.

Foi recebido por Madame Curie no seu segundo dia em Paris. Expôs-lhe o objectivo da sua missão e o seu desejo de preparar uma dissertação de doutoramento. Madame Curie lamentou que a Universidade de Coimbra não tivesse feito o pedido de inscrição na devida altura, pois as inscrições já haviam sido fechadas para o ano escolar que ia precisamente abrir. Mas a sua bondade não permitiria que um jovem português cheio de entusiasmo pela Ciência, tivesse que voltar a Coimbra e aguardar mais um ano. Por isso, e por se tratar de um assistente enviado para Paris pela Universidade de Coimbra «et pour rendre service à l´Université de Coimbra» o admitia no seu próprio laboratório pessoal. E fez-lhe o convite para ajudar o seu assistente, Marcel Laporte, na parte experimental das suas lições. Nesse tempo, Madame Curie fazia o curso de radioactividade para os alunos da Faculdade de Ciências da Universidade de Paris.

Nos primeiros tempos sentiu a falta de preparação científica, especialmente em Física, para acompanhar o ritmo e o alto nível científico do trabalho no Laboratório. Em 1925, vinte anos após a sua publicação, a Teoria da Relatividade ainda não tinha chegado a Coimbra. Nem uma simples referência lhe havia sido feita durante a sua licenciatura. Pensou, naqueles primeiros tempos, regressar a Coimbra, tal era a sua frustração. Mas resistiu. Passou a frequentar na Sorbonne e no Collège de France cursos de Física e Matemática. Foram seus mestres grandes cientistas. Jean Becquerel, filho do célebre Henri Becquerel, foi seu professor no curso geral de radioactividade, dado no Jardin des Plantes; Paul Langevin em física no Collège de France; Goursat em cálculo diferencial e integral; Borel em cálculo de probabilidades; Hadamart em análise matemática; Louis de Broglie no curso de mecânica ondulatória. Assistiu ainda aos cursos de Madame Curie e de Debierne, subdirector do Laboratório Curie.

Em Janeiro de 1957, num artigo publicado numa edição da «Seara Nova» dedicada à energia nuclear, Mário Silva recordava os trabalhos e o ambiente que então se vivia no Instituto do Rádio de Paris: "Para além da actividade docente, Madame Curie vivia mais intensamente os trabalhos de investigação dos que, como eu, preparavam dissertações de doutoramento. O trabalho era intenso, feito numa atmosfera de entusiasmo e de expectativa. Embora nenhuma descoberta sensacional tivesse sido revelada nesse período pré-atómico de 1925-1930, sentia-se, porém, que «alguma coisa» iria surgir de um momento para o outro. Holweck, depois de ter completado os seus trabalhos sobre os espectros de Raios X moles, atacava a fundo o problema da constância das transformações radioactivas, ao mesmo tempo que obtinha os primeiros resultados positivos de televisão. Ainda me recordo que, à falta de outro motivo mais característico, se servia do nariz adunco e bastante saliente do seu dedicado colaborador, Pierre Chevalier, para mostrar o sucesso do seu primitivo dispositivo de televisão, projectando-o num écran de experiência, por forma que todos imediatamente o identificavam. Apesar destes sucessos, era, porém, o problema do núcleo o que mais interessava Holweck. Entre outros ensaios lembro-me de que se servia de fortíssimas descargas eléctricas que volatilizavam fios metálicos sobre os quais fazia um depósito de material radioactivo. Foram sempre negativos estes ensaios e, assim, Holweck confirmava a opinião de que os núcleos radioactivos se mantinham estranhos a qualquer acção exterior que tentasse modificar o seu ritmo de transformação. Quanto a Debierne, então já investigador célebre pela sua descoberta do actínio nos primeiros tempos da radioactividade, nessa época isolava-se um pouco do movimento geral do Instituto, entregando-se a trabalhos de outra natureza. Embora investigador que raras vezes falava, sabia-se da sua presença no Laboratório pelos silvos estridentes do seu pião giroscópio a que imprimia velocidades de rotação fantásticas com o fim de verificar experimentalmente a variação relativista da massa dos corpos com a velocidade... Havia Frilley, que tinha começado os seus trabalhos sobre espectografia de raios gama, por difracção cristalina; H. Jedrzejowski e Consigny, que efectuavam diversas investigações sobre raios alfa; M.lle Chamié e Madame Sonia Cotelle, em trabalhos de rádio-química; Proca que, não tendo ainda experimentado a sua vocação para a Física Teórica, onde viria mais tarde a ser um Mestre, tentava sem sucesso trabalhos experimentais que, embora executados com excelente técnica, nunca o conduziram a trabalhos dignos de nota. Mas, entre todos, o mais entusiasta, o mais dinâmico, o mais persistente nos seus trabalhos, era Salomon Rosenblum com quem mantive uma camaradagem de uma profunda e sólida amizade. Foi assim, com o seu dinamismo aliado a uma esclarecida imaginação, que ele conseguiu ser o primeiro a publicar descoberta de vulto: a estrutura fina dos raios alfa que abriu clareiras novas sobre a estrutura do núcleo, nesse tempo perfeitamente obscura.".

Naquele período pré-atómico, único período em toda a sua vida em que pôde dedicar-se, de facto, à investigação científica, publicou vários e importan­tes trabalhos. Em 1926 publicou, em colaboração com Marcel Laporte, a comunicação à Academia das Ciências de Paris «Mobilité de ions négatifs et courants d´ionisation dans l´argon pur»[3]. Por in­dicação de Madame Curie aplicou aquele método de ionização do argon à determinação do período de vários elementos radioactivos, nomeadamente ao polónio. Verificou que o valor até então referido na literatura não era correcto. O seu valor actual é muito próximo do valor então determinado. Madame Curie, no seu tratado sobre radioactivida­de, indica para o período do polónio o valor deter­minado por Mário Silva. Em 1927 publicou duas comunicações: «Sur une nouvelle détermination de la periode du Polonium» e «Sur la déformation de la courbe d´ionisation dans l´argon pur par addi­tion d´oxygène». Em 1928 publicou «Sur l´affinité de l´oxygène pour les électrons» e «Electrons et ions positifs dans l´argon pur» e em 1929 «Recherches espérimentales sur l´électroaffinité des gaz». Foram todos apresentados à Academia das Ciências de Paris por Jean Perrin[4]. Todos estes trabalhos são prova de uma árdua actividade cien­tífica. Após o seu doutoramento[5] em 1928, do qual foram júris três eminentes cientistas (três Prémios Nobel!), Madame Curie, Jean Perrin e Debierne e, numa altura em que se iam iniciar importantes trabalhos na área da fissão nuclear, Mário Silva foi obrigado a regressar, apesar dos apelos feitos à Universidade de Coimbra, por Madame Curie, para que continu­asse em Paris.


Carta de Madame Curie à Editora Masson, de forma a facilitar a impressão rápida da tese de M. da Silva que é obrigado a regressar ao seu país
No artigo «Velhas Recordações do Laboratório Curie» publicado na revista «Seara Nova» em 1957 escreveu: "... Obtido o desejado Doctorat d´Etat, ès-sciences, com a apresentação de uma dissertação sobre a electroafinidade dos gases, Salomon Rosenblum aconselhou-me a permanecer em Paris onde começa­va, na verdade, a sentir-se com perfei­ta nitidez o desabrochar de uma nova era no estudo dos núcleos atómicos. Com os seus trabalhos, Rosenblum dava os primeiros passos, e o seu entu­siasmo multiplicava-se em novos projectos de in­vestigação. Por meu lado, enveredei pelo caminho da técnica das altas tensões que então já se mostra­va indispensável para o ataque do núcleo atómico. Procurei reproduzir no Laborató­rio, por via expe­rimental, o mecanismo da formação das trovoadas onde facilmente a Natureza produz tensões da or­dem dos milhões de volts, para o que, entre outros dispositivos, me servia de jactos de fi­níssimas gotículas de mercúrio electrizadas... Estes ensaios tiveram, a breve trecho de ser interrompidos por­que... de Coimbra começaram a exigir, com uma insistência cada vez mais acentuada, mesmo sem atenderem à opinião em contrário de Madame Curie, o meu imediato regresso a Coimbra... e para quê - santo Deus!... para dar aulas na velha Uni­versidade... Conformei-me e parti... tanto mais que de lá, entre­tanto, chegava uma notícia agradável... a da criação do Instituto do Rádio de Coimbra...".


Os acontecimentos relacionados com o Instituto do Rádio de Coimbra marcariam para sempre Mário Silva. Num artigo, que corajosamente publicou, no Jornal Notícias de Coimbra em 1938, lembrava: "... No meu tempo, o Instituto de Rádio de Paris era um pequeno mundo onde se falavam quase todas as línguas; eu era o único português, mas havia, além de franceses, russos, polacos, sérvios, romenos, eslavos, suíços e japoneses... No dia do exame de doutoramento de um investigador do Laboratório, Madame Curie, à sua custa, dava uma festa em honra do novo doutor, durante a qual era da praxe que ela fizesse um discurso de elogio das investigações e dos resultados obtidos. Todos os investigadores do Laboratório se associavam à festa e a aspiração de cada um era, mais do que o doutoramento, a festa e o elogio de Madame Curie. Foi também essa a minha aspiração durante os quatro anos do meu estágio, aspiração que eu tive a felicidade de ver realizada. Dessa festa conservo, contudo, uma recordação que me entristece hoje (1938)... É que Madame Curie, no final do seu discurso, ao formular alguns votos, não esqueceu a Universidade de Coimbra. Fecho os olhos e ainda a vejo, com a sua taça erguida, saudar o país distante que lhe tinha dado a alegria de fundar um Instituto do Rádio, lembrando mais uma vez que seria com alegria que viria visitar-nos para assistir à sua inauguração. Mal diria eu então, ao agradecer comovido a saudação, que os anos iriam passar uns após outros, vazios e inúteis por deliberada e malévola intenção de responsáveis que a História um dia há-de severamente julgar, que o Instituto do Rádio de Coimbra acabaria por ser esquecido, lamentavelmente, pela própria Universidade, e que nós todos, nesta Coimbra sempre desprezada, neste velho burgo em que nascemos, nunca teríamos o orgulho de receber e festejar aqui essa gentilíssima figura de mulher e genial cientista que foi Madame Curie".
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[1]Marie Curie-Sklodowska, 1867-1934. Prémio Nobel de Física em 1903 (juntamente com H. Becquerel e Pierre Curie) e de Química em 1911.
[2]O casal Joliot-Curie recebeu, em 1935, o Prémio Nobel da Química pela descoberta da radioactividade artificial.
[3]Este trabalho é citado num importante tratado de Madame Curie: Radioactivité, Masson, 1935.
[4]Prémio Nobel da Física em 1926 pelo conjunto da sua obra.
[5]Dissertação com o título Recherches expérimentales sur l´électroaffinité des gaz, publicada, a pedido de Madame Curie, nos Annales de Physique.

REFERÊNCIAS:
- Mário A. da Silva, Elogio da Ciência, Coimbra Editora, 1963.
- Eduardo Caetano, Mário Silva: Professor e De­mocrata, Coimbra Editora, 1977.
- Publicações do Museu Nacional da Ciência e da Técnica, 1971-1979.
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NOTA FINAL: Este texto foi censurado - vd "post" sobre censura

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