Razao

ESTE BLOGUE COMBATE TUDO O QUE POSSA POR EM CAUSA A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A SUA LIBERDADE. É, POR ISSO, ANTICAPITALISTA E ANTICOMUNISTA.

06/08/09

A Flauta Mágica da Quinta da Melroa


Não era a “Flauta Mágica” de Mozart que, em 1791, enchia de música os salões de Viena, extasiando a melhor sociedade austríaca? “Flauta Mágica”, ópera musicada por Mozart que, com a sua magia, o Bem vencia o Mal e o Espírito da Luz vencia as Trevas.
A flauta da Quinta de Melroa, essa, enchia de música suave as noites de Verão, não debaixo de candelabros de cristais reluzentes, mas sob um “salão” de brilhantes estrelas lá em cima no céu. “Assunção, quem toca tão bem?” “O Filipe, menino”. Percebi, mais tarde, que a magia da flauta do Filipe eram uma serenata de amor para a Assunção. A magia da flauta morreu com a morte de Filipe, no melhor da sua juventude. A flauta do Filipe e a flauta do Zé Amaro cruzavam-se harmoniosamente sobre a Vide. Juntavam-se na mesma harmonia os cantares musicados do harmónio do Augusto Amaral, tocados nos descansos da sua profissão de coveiro e de tamanqueiro famoso.
A Vide, no meu tempo de criança e juventude, era uma aldeia de trasbordante alegria. Alegria própria de um povo que cultivava a solidariedade, solidariedade de porta aberta. Não havia favores, mas sim pedidos com uma amizade transparente e límpida. As retribuições não motivavam angústias ou vergonhas. No carnaval os bailes na casa do Zé Moura, do Vinhas e do Zé dos Santos eram muito divertidos e animados. Animados com músicos folgazões com as suas concertinas, harmónios, gaitas de boca e ferrinhos. Por vezes uma guitarra para o desafio. Aos domingos os bailes no fundo da Castanheira e na Venda faziam pirraça aos bailes mandados no terreiro da ponte. E não faltavam todos os domingos, depois da missa, os bailes à porta do Miguel, com gentes do Rio de Mel, animados pelo cantor Ventura, a desafiar os convencidos cantadores de Vide, o Artur Matias e o Salvador.
“Não achas, irmão Carminé, que quando dançaste o fandango, sobre a mesa da sala de jantar na casa do Tio Joaquim, na Venda, não era o contágio da alegria da tua Vide que tanto engrandeceste?” Nesse tempo os mais idosos eram todos tios. Recordo somente os que mais buliram com a minha imaginação de criança. Dos outros tios ficaram recordações da sua bondade ou de um recado compreensivo, nas diabruras.
Ao “Ti” Zé Domingos alto e magro. À sua profissão de sapateiro aliava uma personalidade de pensador e filósofo. Todas as tardes, na loja do meu padrinho António Nobre, entrevado numa cadeira, juntava-se com o meu pai e com o “Ti” Zé Silva, para o jogo da bisca. Eu, que aviava os fregueses, observava-os, com curiosidade e admiração. Numa dessas tardes, no Inverno, o “Ti” Zé Domingos, com as mãos enfiadas nas mangas do casaco, chegou sem saudar os parceiros da bisca. “Oh Zé, que tens?”, perguntam. “Andam por aí uns surrumangueiros a morder... mas que tenham cuidado e juízo...” “Ainda as aguilhadas vêm das profundezas do Inferno, já eu as estou a sentir no olho do cu”. “Quem?”, perguntámos mais curiosos e atiçados. “Na Vide não nomeio pessoas, para não aumentar a lista dos gajos, que choram o entrudo no pinhal da Venda”, justifica o “Ti” Zé Domingos. Recordo com ele a “Ti” Ana, que me acarinhava em sua casa.
O “Ti” Zé Silva, com a pêra aguçada no seu porte alto e elegante, lembrava uma personagem saída dos romances de Camilo Castelo Branco.
O “Ti” Francisco do Ribeiro mirava-me risonho, da sua pequena janela de granito. Semeou gerações que uniram a inteligência com o sucesso. E na mesma recordação, o “Ti” Augusto Nobre quedava-se ao soalheiro, virado para o Chão da Fonte.
O “Ti” Brito, no canto da sua loja, sempre a vasculhar, com os óculos na ponta do nariz, o seu velho alfarrábio agrícola. Conhecendo a minha tendência para a agricultura, dava-me úteis conselhos sobre a oportunidade das podas e cuidados sobre o giro da lua, nas épocas das culturas.

O “Ti” Zé Augusto dos Santos, pedagogo e mestre no ensino, dava lições aos adultos, no recanto da sua casa. Ao recordá-lo revejo nele o grande Pestalozzi (1746 – 1827), um dos maiores pedagogos na história da educação.
O “Ti” Bernardo Luís, republicano convicto, sonhando já com um mundo mais justo. Aos domingos e feriados “obrigava-me” a saudar a bandeira nacional, içada no mastro, na janela de sua casa.
O António Ferreiro fabricava, na sua forja ao cruzeiro, enxadas e podões sem igual em todo o concelho e regiões limítrofes.
E os famosos artesãos de Vide?
O “Ti” Zé Francisco, o artista canastreiro que construía as melhores cestas e balaias de castanho e a “Ti” Ana da Quinta da Melroa, na magia do seu tear, fabricava belas e garridas mantas de chita e de lã, dando nobreza a todas as salas, mesmo as mais pobres.
O “Ti” Manuel Dias, um dos últimos elos vivos do percurso das gerações passadas, desajeitava-me os calções e, ainda por cima, com uma racha atrás, na sua alfaiataria, contra o meu “estilo de moda”, a pedido dos meus padrinhos. Na sua loja de vendas observava, com uma presença silenciosa e amiga, os “aristocratas” do jogo do voltarete. Voltarete “roubado” no ambiente da lareira da Tia Maria José. Jogo de cartas santificado por mestres clericais, destacando-se o Padre Alfredo, de Unhais.
Recordamos também os antepassados mais distantes no tempo. Antepassados que nos deixaram para sempre obras trabalhadas com enxadões e picaretas, nas encostas e vales das nossas ribeiras. Cortavam xisto com a magia de Miguel Ângelo, o maior escultor italiano e do mundo, quando cortava com o seu cinzel o mármore de Carrara. Cada um, com o seu sonho. Cada um, com a criatividade na sua arte.
Manhãs de Sábado de Páscoa. Os sinos da nossa Igreja anunciavam a Ressurreição de Jesus. Soltavam-se cânticos de aleluias. Aleluias que se misturavam com a neblina sagrada dessas primaveras e com o cheiro macio e saboroso dos bolos quentes da “Ti” Marquinhas da Ponte. O “Ti” Zé António, nos Domingos de Páscoa, entrava com Jesus, em todas as casas, com a missão de juntar todos no mesmo abraço sagrado e festivo. No mesmo abraço, os donos da casa, católicos e não crentes, os raivosos virados a mansos, os zangados abraçados, crianças ranhosas e lavadas, os lambuzados com pão-de-ló, encharcados em vinho, os perfilados, comunistas (estes diziam, já com o lugar reservado no Inferno), os alegres cantadores e macambúzios.
Pedaços de paraíso levados por Jesus, nas Suas caminhadas na Páscoa.
Mas, que tem a ver o passado com a “Flauta Mágica” de Mozart?
Os tempos de hoje respondem. Essa magia morreu. Por isso recordar o passado é uma compensação, para estes tempos e para quem sente a morte dessa magia. Antepassados, sem honrarias sociais, sem cargos de mandar, mantêm-se unidos na mesma solidariedade. Unidos na mesma poeira viva que paira eternamente pelo nosso cemitério. Poeira de antepassados abraçados aos meus, recolhe a verdadeira personalidade do povo de Vide.

Sem comentários: