Razao

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13/06/08

O Porco que Queria Morrer Santo...

Para a história das tradições e costumes portugueses.

O conto, vivido pelo meu pai, passa-se durante os anos trinta do século passado. A Europa assistia à Guerra Civil Espanhola (1936-1939), antevendo as nuvens negras que se aproximavam e que tingiriam de um negro profundo a história da humanidade, na Segunda Grande Guerra (1939-1945). Portugal passaria ao lado, mergulhado numa ruralidade profunda, quase utópica. Entretanto, também o Severino Espanhol chegava ao paraíso. Aqui fica um pedaço desse tempo perdido, uma realidade que eu ainda vislumbrei, mas que os nossos filhos jamais conhecerão, em nome de costumes de outros povos, muito importantes, sem dúvida, mas que nada nos dizem.
Numa manhã outonal, de Outubro, fui visitar os meus tios, na sua casa da Venda. Na cozinha, encontrei uma mulher toda vestida de preto, a preparar-se para fazer benzeduras sobre uma porção alimentar para o porco, sob o olhar esperançoso da minha tia Encarnação. O porco já estava em estado de engorda para a matança, lá para o Natal.
“Tia Encarnação não acredito nisto!”
Reagiu à minha juventude, irreverente e já em mudança para um certo sentido de racionalidade.
“Ó Carlos, o porco está a morrer! E depois!... E depois! … temos tanta gente no Natal”.
“Querida tia... quem vai salvar o porco, sou eu!”.
“Tu?! Mas como?!”.
Nessa altura trabalhava comigo, no Barril de Alva, o Armando Ribeiro, que nesse dia estava também de visita à sua família.
Chamei-o.
“Ó Armando vamos salvar o porco dos meus tios”.
Corremos para o curral. Eram duas horas da tarde, mais ou menos. Ficámos aterrados. O porco estava estendido ao comprido, com os pêlos baços e com o rabo esticado, indicativo de doença grave. O Armando quase gago: “O porco está morto” E agora? Estou tramado e frito. A bruxa vai rir-se de mim, pensei comigo mesmo.

Reagi. Encostei a fivela de metal reluzente do meu cinto, na boca do porco. A fivela ficou logo embaciada. O porco ainda respirava.
E, esperançado comecei logo ao trabalho de salvação. Apalpei-lhe a barriga. Como estava muito inchada, diagnostiquei a doença: timpanismo ou “barriga de gases”, resultante de fermentações de comida estragada ou imprópria.
Na minha angústia, agarrei-me aos ensinamentos práticos da minha mãe para as curas de emergência. Por outro lado, eu sabia que no quadro fisiológico dos animais, a fisiologia do porco é a mais semelhante à do homem.
Lembrei-me, que o meu pai, quando tinha gases no estômago (aerofagia), engolia comprimidos de carvão vegetal. Imediatamente mandei o Armando buscar a sua casa, bocados de carvão. Esmagados e dissolvidos em água morna, enfiámos a mistura, por um funil para dentro do estômago (aerofagia). Em seguida, um clister com azeite em água tépida, para provocar a descarga das fezes.

Como o porco não se mexia, socorri-me de outro tratamento de cura, que a minha mãe usava. Quando eu era muito criança, aliás ainda usual nos bebés, metia no meu rabo, um talinho de couve, para esvaziar os meus intestinos.
“O Armando, vai depressa buscar um toro de couve, mas grosso e comprido”. Untámo-lo de azeite e, de imediato, enfiámo-lo todo pelo cu acima do porco. O Armando, como um desalmado esfregava, esfregava… Aqui, o porco vingou-se. A descarga de gases foi de tal ordem, que o Armando, ainda com o toro de couve na mão foi atirado contra a parede do curral.
“Ó Armando, que grande peido?”. “Peido? Isto, foi uma bomba”.
Socorri-me, já esperançado, depois desta descarga, do último recurso para a cura do porco, o esfreganço com o vinagre, porque sabia que o vinagre era usado para reactivar o sistema nervoso e os órgãos motores. Rasguei a minha camisa de flanela e com os seus pedaços esfregámos, sem descanso, a espinha do porco, da cabeça ao rabo.
Entretanto, a tia Marquinhas, mãe do Armando veio em nosso auxilio deitar na pia, depois de bem lavada uma aguada de arroz para acalmar e limpar os intestinos do porco, no caso de sobreviver.
Depois destes tratamentos de cura, não resistimos ao cansaço e ao sono. Adormecemos encostados um ao outro.
Eram cerca de oito horas da manhã, já com o sol a assomar à porta do curral, quando acordei. E o que vejo? O porco na minha frente, empertigado, já com o rabo em rosca e a fixar-me com os seus olhos brilhantes e estranhos.
O Armando, quando o viu, deu um salto: “Ressuscitou… ressuscitou”.
Reparei que a pia já estava quase vazia. A tia Marquinhas nunca deixou de acreditar na nossa luta contra as benzeduras.
Transponho para o porco, o conceito de alma animal, em forma de mensagem. Mensagem que reproduzo na minha perspectiva numa convergência dos três estados de alma, na igual humanização de todas essas manifestações de vida.
“Estes sacanas, salvaram-me para me matar. Os humanos matam, esfolam e chamuscam a alma, uns dos outros, para morrer e eu sou morto para lhes dar vida. Os cobardolas amarram-me ao banco, espetam no meu gorgomilo um facalhão e ficam aparvalhados com os calos da enxurrada do meu sangue. Não sabem estes hominídeos que os meus órgãos serão utilizados em transplantes para substituir os seus órgãos fanados, porque descobriram que sou, fisiologicamente, o único animal com maior semelhança com o homem. Eu sei que vou ser comido desde a minha tromba à ponta do rabo, em festins, com danças, com cantares e com bebedeiras.
Eu sei, também, que vou ser rilhado durante muito tempo, durante anos, em baptizados, casamentos e em euforias políticas e religiosas. Até o Senhor e os Santinhos da Igreja, sentem arrepios, quando à porta da sua casa, em dias festivos, ouvem as arrematações das fogaças: “Quem dá mais por este chouriço, quem dá mais por este bucho, que é de comer e chorar por mais. Sem o respeito pelo uso costumeiro, fui salvo para ser morto, quando seria mais justo, se tratado com benzeduras, para ter, sim, uma morte santa.”

As bruxas aguardavam a morte do porco assentadas nos degraus da porta da Casa da Venda. Logo que souberam que o porco “ressuscitou”, fugiram…

…e assim acabaram as bruxas em Vide.

C.N.

Nota: desenhos da autoria do artista plástico Álvaro de Matos, Coimbra.

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