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11/12/11

Madame Curie: no 100º aniversário do Prémio Nobel da Química

A propósito de neste Domingo, dia 11 de Dezembro, passarem 100 anos sobre o discurso de Madame Curie (Marie Sklodowska-Curie 1967-1934) perante a Academia Real das Ciências da Suécia, que lhe atribuiu o segundo Prémio Nobel da sua carreira de cientista, transcrevemos na íntegra um artigo escrito em 1938 no jornal "Notícias de Coimbra" do seu discípulo, o Físico português Mário Augusto da Silva. O Nobel da Química foi-lhe atribuído pelas descobertas do Rádio e do Polónio. Anteriormente, em 1903, tinha recebido o Nobel da Física, juntamente com o seu marido Pierre Curie e Antoine Henri Becquerel, pelos seus trabalhos de investigação sobre o fenómeno da radioactividade espontânea, descoberta por Becquerel. Morreu em 1934 vítima de uma leucemia provocada pelas radiações a que esteve sujeita durante a sua carreira de investigadora. As mesmas que também são usadas para tratar tumores malignos.

No 40º aniversário da descoberta do Rádio - Madame Curie

pelo Professor Doutor Mário Silva

A recente celebração oficial do 40º aniversário da descoberta do Rádio fez novamente correr mundo os dados biográficos mais interessantes dessa gentilíssima figura de mulher que foi Madame Curie. Já quando, em 1923, se celebrou o 25º aniversário, por jornais, revistas e livros de todo o mundo se registaram as características mais notáveis da vida e da obra da ilustre cientista. Na recente celebração, os autores de artigos de jornais e os conferentes encontraram uma excelente fonte de informação no livro que, no ano passado, Eve Curie escreveu e dedicou à memória de sua Mãe. São, pois, geralmente conhecidos os pormenores da descoberta do Rádio e as circunstâncias particulares da vida da sua autora; nestas condições, solicitado amavelmente pelo «Noticias de Coimbra» a escrever, para um número comemorativo da referida descoberta, duas palavras sobre Madame Curie, parece-me que não devo correr o risco de dizer o que por tantos tem sido descrito e contado; mais Interessante será registar algumas, pelo menos, das impressões pessoais que tive o feliz ensejo de colher durante os anos em que Madame Curie foi a orientadora dos meus trabalhos de doutoramento, e durante os quais tive a honra ele ser, em muitas das suas aulas teóricas, seu assistente na preparação das demonstrações experimentais.

O meu primeiro encontro com Madame Curie tenho-o ainda gravado na memória com toda a nitidez, tão funda impressão me causaram a simplicidade de maneiras com que me acolheu e a solicitude atenciosa com que prometeu resolver as dificuldades que se levantaram à minha admissão no seu Laboratório onde todos os lugares, nesse princípio de ano lectivo de 1925, tinham sido já tomados. Não me fez desanimar, antes, pelo contrário, pediu-me que esperasse uns dias por uma resposta definitiva, que seria provavelmente favorável, ao meu pedido de admissão. Registo aqui as palavras que me escreveu dias depois, pelo que elas representam de atenção para com a Universidade de Coimbra:

“Monsieur - Vous avez demandé à être admis à tl'availler au Laboratoire Curie de l’Institue du Radium pour apprendre la technique et pour faire une recherche personnelle. A fin de rendre service à la Université de Coimbra que vous a confié cette mission, je suis disposé à accorder votre admission, bien que vous avez fait votre demande trop tard, quand l’organisation de l’année scolaire était déjà, en príncipe, arrêtée. Veuillez agréer, Monsieur, mes salutations sincères – (a) M.Curie.”

Com o maior alvoroço respondi imediatamente:

“Madame - Tout en vous remerciant beaucoup de votre letre, j'ai le plaisir de vous communiquer que j'accepte tout ce que vous m'avez proposé. Je ferai mon inscription au Secrétariat e j'attendrai l'ollverture de votre cours et du Laboratoire. Je viens d'écrire à M. le Recteur de I' Université de Coimbra et à M. le Directeur du Laboratoire de Physique où j'ai travaillé, en leur rendant compte de ce que vous m'avez proposé et en leur faisa

nt remarquer que vaus accordiez mon admission au Laboratoire Curie pour rendre service à I'Université de Coimbra. Je vous prie d'agreér mes respectueux remerciements - (a) M. A. da Silva”

Carta do Secretário do Instituto do Rádio de Paris, M. Razel, convocando Mário Silva para uma reunião no Laboratório Curie. M. Laporte era assistente de Marie Curie no laboratório com quem Mário Silva ficou a trabalhar. Fréderic Joliot foi admitido no mesmo ano no laboratório, tendo ficado a trabalhar directamente com Iréne Curie com quem viria a casar.

Na falta de um lagar no Laboratório, foi na sua sala de aula que Madame Curie me instalou para a execução dos meus primeiros trabalhos. Assim se explica, em grande parte, a atenção com que os seguiu desde o início, e todo o interesse que por eles tomou. Assim se explica também que eu tivesse ficado em estreita ligação com a organização do seu curso teórico e que eu tivesse tido a honra de a auxiliar nas demonstrações experimentais das suas lições. Nunca mais me foi possível esquecer a emoção que senti quando, pela primeira vez, entrei a seu lado na sala de aula onde, nesse dia, ela ia falar sobre a Teoria das transformações radioactivas a um numeroso auditório que a recebeu de pé e, segundo o costume, com uma prolongada salva de palmas. A experiência que eu tinha previamente montado e verificado era das mais curiosas do curso: demonstração a todo o auditório do ritmo das transformações radioactivas, tornando, por assim dizer, audível as explosões dos átomos do Rádio; um amplificador ligado a um altifalante estava disposto para registar cada uma das explosões dos átomos do precioso metal. A experiência é curiosa porque revela bem o carácter de probabilidade das transformações radioactivas. O estudo teórico destas transformações encontra pois nesta experiência uma excelente confirmação. Madame Curie desenvolveu a sua lição metodicamente, magistralmente, durante os três quartos de hora habituais das suas aulas, e guardou para o final a execução da experiência. Quando acabou e anunciou que eu ia realizá-la, confesso que um peso enorme me oprimiu: a experiência podia falhar, uma das lâmpadas do amplificador, qualquer coisa da montagem podia ter-se desarranjado. Foi com enorme sacrifício que reprimi toda a minha emoção, e comecei com calma aparente a fazer as ligações. Ao pegar no pequeno tubo de Rádio com que eu ta fazer a demonstração, tive a sensação de que podia dar-se uma catástrofe, tal receio tinha de um insucesso. Felizmente, o pequeno tubo de rádio depressa mostrou a sua actividade. Começaram a soar altifalante as primeiras explosões radioactivas, e o auditório, entusiasmado, aplaudiu, misturando o barulho das suas palmas com o ruído das explosões atómicas. Respirei aliviado e quase tive a ilusão, nesse minuto para mim memorável, de que aquelas Palmas também se dirigiam ao ignorado português que ali estava, sentindo que acabara de viver um dos momentos mais emocionantes da sua vida de professor.

Por mais de uma vez, Madame Curie me fez sentir que era com o maior interesse que se empenhava em, como ela diz na carta que transcrevi, «rendre service à I' Université de Coimbra». Quando Doumergue, então Presidente da República, visitou oficialmente o Instituto do Rádio, Madame Curie teve particular interesse em me apresentar; recordo ainda que afirmou ao Presidente que tinha a maior satisfação em ter no seu Laboratório um assistente da mais antiga Universidade Portuguesa, a Universidade de Coimbra.

Tantas vezes, realmente, a ouvi falar de Coimbra que não descansei enquanto não consegui um meio de provar-lhe que, reconhecida, a velha Universidade Portuguesa, a ia homenagear..., não com mais um doutoramento «honoris causa» ou com uma recepção oficial cheia de pompa. De há muito que eu sabia que Madame Curie fugia, sempre que podia, a exibições de grande aparato, que tinha mesmo horror às grandes manifestações oficiais, com discursos e condecorações. Tal como Pierre Curie, Madame Curie vivia exclusivamente para os seus trabalhos de investigação e para o seu Laboratório. A homenagem a prestar-lhe devia pois ter em atenção as suas predilecções e o seu ideal de vida. Nada melhor podia ter arranjado do que comunicar-lhe que a Universidade de Coimbra ia ter, como a sua Universidade, um Instituto do Rádio feito à imagem e semelhança do seu próprio Instituto. Era a projecção da sua obra no pequeno país do Ocidente da Europa; era continuar aqui a ciência que ela tinha criado e que constituía toda a ambição da sua vida. A ideia tinha sido feliz. Foi com a alegria de uma criança que acaba de ter um brinquedo desejado, que Madame Curie me felicitou e se felicitou por saber que mais um Instituto do Rádio ia aparecer consagrado às investigações e às aplicações do «seu Rádio». Tão grande foi essa alegria que logo me propôs vir assistir à sua inauguração. Foi esta a agradável notícia que eu trouxe para Portugal quando regressei em 1929. A todos anunciei que Madame Curie viria expressamente a Coimbra, e só a Coimbra, assistir à inauguração do novo Instituto. O professor Doutor Álvaro de Matos, director da secção médica, foi dos primeiros a receber a notícia. O seu entusiasmo não foi inferior ao meu, e desde logo pensou em abreviar a realização de tão importante acontecimento. Neste sentido trabalhei, mas todos os meus esforços foram inúteis. Nove anos depois o Instituto do Rádio de Coimbra continua com as suas portas fechadas e, o que é mais doloroso, a morte de Madame Curie irremediavelmente inutilizou o projecto em cuja realização empenhei o melhor da minha boa vontade. À memória de Madame Curie devo esta declaração de consciência.

Para terminar, algumas palavras mais sobre o ambiente de trabalho no, Instituto do Rádio de Paris.

No meu tempo, O Instituto era um pequeno mundo onde se falavam quase todas as línguas; eu era o único português, mas havia, além de franceses, russos, polacos, sérvios, romenos, eslavos, suíços e japoneses.

A direcção científica de Madame Curie a todos se impunha, excepção feita - porque não dizê-lo? - de alguns franceses. Eu sei - toda a gente sabe que a França, pátria adoptiva de Madame Curie, várias vezes homenageou a ilustre Professora; mas pouca gente sabe que o sentido dessas homenagens muitas vezes se dirigiu com acentuada persistência ao nome de Curie. Mais ainda: quase ninguém sabe que, para muitos franceses, Madame Çurie foi sempre considerada a usurpadora de uma situação e de funções que eles teriam preferido ver em mãos de compatriotas. Certa imprensa chegou mesmo, há alguns anos, a fazer campanha contra Madame Curie Registe-se contudo também que ela teve em muitos dos mais eminentes, amigos sinceros, dedicados até à veneração. No Laboratório era por vezes bem sensível o ambiente de frieza feito por muitos à sua volta. Ela devia senti-lo, e daí o seu retraimento. Poucas vezes saía do seu laboratório privativo, e muitos trabalhos faziam-se sem que ela tomasse conhecimento. Isso não impedia, porém, que algumas vezes, esquecidas atitudes passadas, ela não fosse conversar, com o seu habitual sorriso com os que mais se afastavam, e tudo se passava então como se existisse, entre lodos, a mais cordial e amiga das convivências. No «savoir vivre», os franceses dão sempre lições...

A actividade em todo o laboratório mantinha-se durante o ano num ritmo constante com uma média de oito horas de trabalho diário intenso. Madame Curie dava o exemplo. Às 9 horas da manhã, quase sempre, era a primeira a entrar no Laboratório. Ás vezes, porém, havia feriado extraordinário, mais do que feriado, havia festa. Era a festa dos doutorados. No dia do exame de doutoramento de um trabalhador do laboratório, Madame Curie, à sua custa, dava uma festa em sua honra, durante a qual era da praxe que ela fizesse um discurso de elogio do novo doutor. Todos os trabalhadores do Laboratório se associavam à festa, e a aspiração de cada um era, mais do que o doutoramento, a festa e o elogio de Madame Curie. Foi também essa a minha aspiração durante os quatro anos do meu estágio, aspiração que eu tive a felicidade de ver realizada. Dessa festa conservo, contudo, uma recordação que me entristece hoje (1938)... É que Madame Curie, no final do seu discurso, ao formular alguns votos, não esqueceu a Universidade de Coimbra. Fecho os olhos e ainda a vejo, com a sua taça erguida, saudar o país distante que lhe tinha dado a alegria de fundar um Instituto do Rádio, lembrando mais uma vez que seria com alegria que viria visitar-nos para assistir à sua inauguração. Mal diria eu então, ao agradecer comovido a saudação, que os anos iriam passar uns após outros, vazios e inúteis, que o Instituto do Rádio de Coimbra acabaria por ficar esquecido da própria Universidade que o instalou, e que nós nunca teríamos o orgulho de a ver no velho burgo em que nascemos”.

Coimbra, 1 de Dezembro de 1938.

Mário Augusto da Silva.

Note-se que Mário Silva não podia dizer mais, pois estávamos em pleno Estado Novo, com o fascismo e o nazismo em verdadeira ascensão por toda a Europa. A realidade foi que o Instituto do Rádio de Coimbra foi boicotado directamente pelo próprio Salazar.



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